terça-feira, 22 de junho de 2010

SEI LÁ


“ - Qual condição? Condição de mulher casada com um pulha? E que condição sofres tu? Tens medo de assumir compromissos mas já não gostas de viver sozinha, queres ter uma família mas não és capaz de abdicar da tua vida por nada nem por ninguém. E não me venhas com essa história da emancipação, basta olhar para ti, para a Mariana e para a Luísa, cada uma à sua maneira a sofrer na pele a vossa condição de mulheres emancipadas. A Mariana está uma escrava do seu próprio comodismo; tudo a cansa, a aborrece e lhe dá sono. A Luísa parece uma gata assanhada, come tudo o que lhe passa pela frente. E tu nem sequer sabes o que queres, enquanto suspiras pelo Ricardo que se eclipsou. (…) Como vês, a tua vida, a vossa vida não é mais fácil do que a minha, é só mais leve e mais vazia. Vocês estão convencidas que emancipação é fazerem tudo o que vos passa pela cabeça e acabam por não construir nada.
Sinto-me possuída por um mutismo atávico, esmagador. Podia ripostar, atirar-lhe à cara que o que ela tem é inveja da nossa liberdade, mas sei que isso não é verdade. Para ela a liberdade não é um bem precioso, nunca lhe conheceu o verdadeiro sabor (…) è como uma criança que nunca teve irmãos. Ninguém pode sentir o que perdeu sem o ter tido antes.
(…) Baixou a cara, escondeu-a entre as mãos e começou a soluçar baixinho, sincopadamente, num queixume brando, perdido, escondido dentro de si mesmo.
-
Vá lá, não chores…achas que ele merece o que estás a passar?
- E tu, achas que eu mereço o que estou a passar?
Bolas, abdiquei do curso por causa dele, fiz tudo para lhe dar uma família feliz e para quê? Para ele ter namoradinhas por fora? Sou assim tão pouco atraente e interessante?
- O defeito não está em ti, mas nele, não percebes isso?
Não te podes deixar desvalorizar aos olhos dele, nem perante ti própria. Um homem que tem casos tem-nos independentemente de gostar da mulher com quem vive. O Bernardo é assim, está-lhe no sangue. É um predador. Para ele as mulheres são troféus de caça,
vais ver que esta gaja é mais uma história sem importância como as outras…
- Mas se não tem importância porque é que lhe telefona todos os dias, porque é que lhe liga aos fins-de-semana, porque é que se mete a fundo nesta merda toda e me arrasta com ele? Porque é que não respeita os filhos e a família?
A Catarina está agora transtornada, fala alto e de forma atabalhoada, gesticula e entrelaça os dedos no cabelo como se quisesse arrancar mechas inteiras. Por fim, encosta a cabeça nos meus joelhos e chora convulsivamente durante alguns minutos. Ao fundo os Billie Holiday continua a cantar ironicamente “You can´t be mine and some else´s too, some day you´ll find I have a friend to you…
O que mais me entristece não é o que a Catarina sofre, é ter sido sempre assim a condição feminina. Aguentar as merdas que os homens fazem. Tudo isto é banal, desgraçadamente banal e inegável. “

Margarida Rebelo Pinto, "Sei Lá"

2 comentários: